Edgar Moreno: Conceição

Por Edgar Moreno
COSTA FILHO, João Batista da que também representa o heterônimo Edgar Moreno.

Conceição acordou como se de um profundo sono. Era a primeira vez em trinta anos que ela punha os pés fora do batente de casa. Não importa o que Conceição fez todo esse tempo. Mas é certo, não tinha saído de nenhuma prisão domiciliar, não era uma condenada (pelo menos da justiça), não tinha nenhuma marca de cadeado (pelo menos no corpo), não tinha estado doente, portanto não se tratava de convalescença, tampouco tinha retornado de algum lugar longínquo. Conceição simplesmente acordou.

Era 13 de junho, uma sexta-feira, digamos, comum e diferente: café da manhã, arrumação dos sobrinhos à escola, recadinhos na geladeira, casa, louças, roupas fuçadas para lavar e engomar, um monte de coisas que a faziam pirar e que já sinalizavam: aquele não era o seu mundo. Passou pelo calendário. Lembrou-se que era dia de Santo Antônio. Tinha que fazer o bolo e a fogueira. Foi ver o dinheiro na gavetinha da mesa. O celular tocou largado no sofá. Estranhou o objeto tão pequeno e de som tão potente. Sem querer acionou a tecla “atender”, ou que tenha sido da caixa postal do aparelho. Uma voz adolescente berrou do outro lado:


− E aí brother, tá ligado ainda na mina? Num vai broxar no trato, hein! Hoje tem rolezinho na boa. Xau aê!
Conceição não entendeu patavina! Apenas balançou negativamente a cabeça assim que seu olhar peitou com o dos sobrinhos que já saíam para a escola. Sorriram. Bateram as mãos para cumprimentarem a tia, mas Conceição se perdeu completamente naqueles gestos e piruetas de mãos. Terminou abençoando-os da maneira tradicional, com um beijo nas costas das mãos, acompanhado dum “Deus te abençoe!”.
− Indo nessa, tia. Tamo junto mais tarde – saíram requebrando-se em danças moderno-obscenas.


Conceição correu para a cozinha. Benzeu-se. O bolo era coisa infaltável no festejo à noite. Pouco importava o comentário capitalista e anticlerical dos sobrinhos. Olhou a despensa. Faltavam alguns ingredientes. Correu à porta. Todos os vizinhos cerravam-se em seus muros intransponíveis. Estava cancelada a troca de massas, a xícara de açúcar, a pitada de sal, o empréstimo do pilão, o papo à noite pegando ventinho. Lembrou-se da gavetinha. A mesa não tinha gaveta, muito menos dinheiro. Foi encontrar uma nova moeda – o cartão de crédito – num cofre de parede. Desabou à quitanda mais próxima, mas não achou lá a descontração e simpatia das quitandas de antes. Ninguém era de ninguém e todo mundo era suspeito, além das filas, marcas, tabelas, tentações promocionais, os diabos!

Conceição respirou fundo. Era seguir em frente. Voltou para seu bolo. Mas ainda tinha a fogueira. Não somente a do dia 13, mas também do 24 e do 29. Que deixasse cada uma no seu dia. Quis prosear isso com as “cumades”, mas não as encontrou. Não as tinha. Também os sobrinhos já o tinham dito: o verbo não era “prosear”, era “compartilhar”. Conceição não gostava, ou melhor, não “curtia” essa nova forma de expressão, mas ela agora acordava: os tempos eram outros. Levou seu bolo ao fogareiro. Abafou-o mesmo no forno elétrico. Programou-o erradamente. Enxugou as mãos nas saias. Ufa! Agora podia ouvir uma cantiga. Foi buscar Agnaldo Timóteo, Núbia Lafayette ou que fosse Frank Sinatra. Não encontrou LP ou Compacto. Os velhos discos de vinil agora se chamavam CD, MP3, pendrive... A velha vitrola, já superada pela radiola, atendia agora por “som” ou “paredão”, aquela parafernália de caixas e tweeters, que a sobrinhada tanto desejava. Abandonou tudo para ir ver lenha para a fogueira. Não havia lenha, nem floresta, nem foice, nem cutelo. Correu à cozinha. O bolo tinha torrado. A essa altura, já sabia, a igreja tinha perdido a tradição, estando mais para clube social. Coitada da Conceição: sem fogueira, sem cantiga, sem bolo, sem fé, sem comunicação. Coitada da Conceição! Por que foi acordar... Correu ainda ao calendário. Era 2014.


Era 13 de junho, uma sexta-feira, digamos, comum e diferente: café da manhã, arrumação dos sobrinhos à escola, recadinhos na geladeira, casa, louças, roupas fuçadas para lavar e engomar, um monte de coisas que a faziam pirar e que já sinalizavam: aquele não era o seu mundo. Passou pelo calendário. Lembrou-se que era dia de Santo Antônio. Tinha que fazer o bolo e a fogueira. Foi ver o dinheiro na gavetinha da mesa. O celular tocou largado no sofá. Estranhou o objeto tão pequeno e de som tão potente. Sem querer acionou a tecla “atender”, ou que tenha sido da caixa postal do aparelho. Uma voz adolescente berrou do outro lado:

− E aí brother, tá ligado ainda na mina? Num vai broxar no trato, hein! Hoje tem rolezinho na boa. Xau aê!
Conceição não entendeu patavina! Apenas balançou negativamente a cabeça assim que seu olhar peitou com o dos sobrinhos que já saíam para a escola. Sorriram. Bateram as mãos para cumprimentarem a tia, mas Conceição se perdeu completamente naqueles gestos e piruetas de mãos. Terminou abençoando-os da maneira tradicional, com um beijo nas costas das mãos, acompanhado dum “Deus te abençoe!”.
− Indo nessa, tia. Tamo junto mais tarde – saíram requebrando-se em danças moderno-obscenas.


Conceição correu para a cozinha. Benzeu-se. O bolo era coisa infaltável no festejo à noite. Pouco importava o comentário capitalista e anticlerical dos sobrinhos. Olhou a despensa. Faltavam alguns ingredientes. Correu à porta. Todos os vizinhos cerravam-se em seus muros intransponíveis. Estava cancelada a troca de massas, a xícara de açúcar, a pitada de sal, o empréstimo do pilão, o papo à noite pegando ventinho. Lembrou-se da gavetinha. A mesa não tinha gaveta, muito menos dinheiro. Foi encontrar uma nova moeda – o cartão de crédito – num cofre de parede. Desabou à quitanda mais próxima, mas não achou lá a descontração e simpatia das quitandas de antes. Ninguém era de ninguém e todo mundo era suspeito, além das filas, marcas, tabelas, tentações promocionais, os diabos!

Conceição respirou fundo. Era seguir em frente. Voltou para seu bolo. Mas ainda tinha a fogueira. Não somente a do dia 13, mas também do 24 e do 29. Que deixasse cada uma no seu dia. Quis prosear isso com as “cumades”, mas não as encontrou. Não as tinha. Também os sobrinhos já o tinham dito: o verbo não era “prosear”, era “compartilhar”. Conceição não gostava, ou melhor, não “curtia” essa nova forma de expressão, mas ela agora acordava: os tempos eram outros. Levou seu bolo ao fogareiro. Abafou-o mesmo no forno elétrico. Programou-o erradamente. Enxugou as mãos nas saias. Ufa! Agora podia ouvir uma cantiga. Foi buscar Agnaldo Timóteo, Núbia Lafayette ou que fosse Frank Sinatra. Não encontrou LP ou Compacto. Os velhos discos de vinil agora se chamavam CD, MP3, pendrive... A velha vitrola, já superada pela radiola, atendia agora por “som” ou “paredão”, aquela parafernália de caixas e tweeters, que a sobrinhada tanto desejava. Abandonou tudo para ir ver lenha para a fogueira. Não havia lenha, nem floresta, nem foice, nem cutelo. Correu à cozinha. O bolo tinha torrado. A essa altura, já sabia, a igreja tinha perdido a tradição, estando mais para clube social. Coitada da Conceição: sem fogueira, sem cantiga, sem bolo, sem fé, sem comunicação. Coitada da Conceição! Por que foi acordar... Correu ainda ao calendário. Era 2014.

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